No apito final que consagrou o Flamengo tricampeão da Libertadores, quase todo o Rio de Janeiro gritou. Por volta das 19h do dia 29 de outubro de 2022, esquinas, bares, piscinas, calçadas e ruas inteiras comemoravam em rubro-negro. Mas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, segunda maior cidade do estado, foi um pouco diferente. É que lá dentro, na comunidade das Palmeiras, havia um lugar a menos para reunir gente, fazer churrasco, beber cerveja e comemorar o título.
Onze meses antes, o Piscina’s Bar, às margens do mangue, teve a sua última festa. Era noite do dia 20 de novembro de 2021 e os donos do convescote eram policiais do Bope, batalhão de elite da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Sem serem convidados, foram ao Piscina's, comeram arroz, carne, linguiça, beberam cerveja, roubaram caixas de uísque, derrubaram móveis na piscina.
Era o “fechamento com chave de ouro” de uma operação policial realizada nas Palmeiras. Enquanto a festa rolava, a poucos metros do Piscina’s Bar, centenas de moradores da localidade se embrenhavam no mangue em busca de oito homens assassinados por esses mesmos policiais — um nono corpo já tinha sido encontrado durante o dia.
Na porta do local, um caveirão dava cobertura à comemoração dos policiais — antes, durante e depois da chacina. No estabelecimento, ouviam-se risadas e quebradeiras. Na manhã seguinte, o cenário de terra arrasada na comunidade se estendia àquela piscina. Pichações em menção ao “grupo delta” do Bope, uma Bíblia aberta, restos de comida e nada no estoque, exceto umas cervejas da marca mais barata. O que não foi consumido, foi roubado.
Não sobrou nada, nem forças para o dono voltar a investir ali.
A parede do Piscina's Bar, fechado desde a chacina (Foto: Lola Ferreira).
Voltei à comunidade das Palmeiras logo depois da conquista do título do Flamengo. O Piscina’s Bar continuava fechado. A população da localidade tinha se reduzido drasticamente.
Desde então, o cenário se deteriorou progressivamente. O dia 21 de novembro de 2021 alterou as relações intracomunitárias para sempre. A entrada do Bope na comunidade aconteceu um dia após o sargento Leandro Rumbelsperger da Silva, de 38 anos, morrer baleado na Itaúna — outra comunidade do Complexo do Salgueiro.
Àquela altura, o Salgueiro já estava na mira das forças de segurança, devido à volta dos bailes funks — vistos como demonstração de força — e pela localização às margens de uma rodovia federal, o que facilitaria o escoamento de carga roubada. A versão oficial afirma que o policial foi ferido em patrulhamento. Moradores afirmam haver uma disputa exatamente pela realização ou não dos bailes.
Rumbelsperger foi ferido por volta das 6h da manhã de um sábado. A chacina que aconteceu depois disso terminou com nove mortos: Carlos Eduardo Curado de Almeida, 33; David Wilson Oliveira Antunes, 23; Douglas Vinicius Medeiros da Silva, 27; Elio da Silva Araújo, 52; Italo George Barbosa de Souza Gouvêa Ros, 33; Jhonata Klando Pacheco, 26; Kauã Brenner Gonçalves Miranda, 17; Rafael Menezes Alves, 28 e Igor da Costa Coutinho, 24 — este, o primeiro a morrer, foi encontrado ainda no domingo. Os outros, foram retirados do mangue na madrugada de segunda-feira por suas mães, primos, tios e vizinhos.
Essas famílias não quiseram acompanhar a investigação judicial, que está parada. Ninguém foi preso, e não há expectativa de que será. A imprensa é rechaçada. O entendimento geral é que nada pode mudar o que aconteceu, principalmente quando a opinião pública entende que “bandido bom é bandido morto”.
“É uma cidade-fantasma”, relatam moradores em uníssono sobre as Palmeiras. A Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro estima que atualmente cerca de 300 famílias morem ali. Mas muitas casas estão abandonadas, vazias, permanentemente entregues às enchentes que acontecem até na chuva mais fina.
Uma escola permanece fechada desde 2021. A quadra poliesportiva, naquela época usada para projetos sociais, não tem mais condições de abrigar um jogo de futebol infantil sequer. Os ônibus que deveriam ir até ali, poucas vezes chegam. Muitas vezes, as conduções não circulam porque estão impedidas pelas barricadas que surgem rapidamente diante da ameaça de mais uma operação.
Após novembro de 2021, a comunidade entendeu uma rotina: a polícia entra, mata, faz o rescaldo de “monitoramento” por alguns dias. Depois, some. E volta, entra, mata e repete. As crianças sabem; por isso, temem quando “o morro está muito tranquilo”. Os idosos sabem, mas nunca se acostumam com o caveirão estacionado na praça da entrada da favela, dividindo atenção com o ponto de mototáxi.
Nos últimos sete anos, assim tem sido. Desde 2016 aconteceram 14 chacinas policiais no Complexo do Salgueiro. Elas deixaram 66 pessoas mortas. A que aconteceu nas Palmeiras em 2021 era a maior delas até que em 23 de março de 2023 houve mais uma entrada fatal: 13 pessoas foram mortas pela Polícia Militar.
A desesperança dos familiares dos mortos na chacina de 2021 e os impactos na vida dos atingidos pela chacina de 2023 são reflexos da política pública que o Estado tem para o Complexo do Salgueiro. Sobram alagamentos, tiroteios, chacinas, mortes e crianças temendo caveirão antes de aprender a falar. Não há festa que dure.
Policiais do Bope escreveram provocação em parede de bar após chacina (Lola Ferreira).
Grupo de policiais que invadiu bar quebrou vidros e deixou latas de cerveja vazias no chão (Foto: Lola Ferreira).